Maurice Lachâtre (Maurice de la Châtre) (1814-1900) era
um francês que fora exilado na Espanha, mais precisamente em Barcelona.
Lachâtre era um homem de vanguarda, radical defensor da liberdade de expressão,
caracterizando-se por ser um típico oriundo dos mais elevados ideais
iluministas franceses. Lachâtre era um grande crítico da Igreja católica, do
governo de Napoleão III e da associação entre o governo e a Igreja. Lachâtre
era escritor e editor (foi responsável pela publicação da enciclopédia “Novo Dicionário Universal” e também pelo
famoso “A História dos Papas”, que publicara inicialmente nos anos
1842-1843 em 10 volumes) e foi
forçado a se exilar na Espanha, justamente em função das obras que publicara,
as quais eram tidas como ofensivas aos interesses da igreja e do governo
autoritário de Napoleão III. Lachâtre viveria na Espanha até o início dos anos 1.870,
antes de novo retorno à França, em função da Comuna de Paris. Entretanto, com a
derrota desse movimento, voltaria à Espanha.
No
início dos anos 1.860, Lachâtre havia estabelecido em Barcelona uma livraria. Maurice
Lachâtre era um homem que acompanhava a efervescência cultural da época e
estava muito bem informado sobre os fenômenos mediúnicos associados ao chamado
“Neo-Espiritualismo” (desde 1.848, quando ocorreram os fenômenos de efeitos
físicos de Hydesville) bem como ao Espiritismo propriamente dito. Lachâtre
solicitou a Kardec o fornecimento de livros espíritas, para vendê-los na
Espanha.
Lachâtre solicitara aproximadamente
trezentas (300) obras espíritas a Allan Kardec. Conforme registro na “Revue
Spirite” de Novembro de 1861 (TOMO IV), em artigo intitulado “O Resto da Idade
Média / Auto-de-fé das Obras Espíritas em Barcelona”, Allan Kardec enviou obras
relevantes, tais como “O Livro dos Espíritos”; “O Livro dos Médiuns”; “O que é
o Espiritismo”; e volumes da “Revista Espírita”, os quais eram livros
codificados pelo próprio Kardec, juntamente com livros importantes relacionados
ao Espiritismo como, por exemplo, “A História de Jeanne d`Arc, ditada por ela
mesma”, de Ermance Dufaux; “Fragmento de sonata",
atribuído ao Espírito de Mozart; "Carta de um
católico sobre o Espiritismo" pelo doutor Grand; "A realidade
dos Espíritos demonstrada pela escrita direta", pelo barão de Guldenstubbé; “A
Revista Espiritualista” do diretor Piérard.
Todas as tarifas alfandegárias das
respectivas obras já tinham sido devidamente pagas. De fato, conforme Allan
Kardec explica em “Obras Póstumas” (Segunda parte), “chegados os livros,
cobraram-se do destinatário os direitos de importação, mas antes de lhos
entregarem, tiveram de deferir o despacho ao bispo, autoridade eclesiástica
que, na Espanha, tem a fiscalização dos livros. Achava-se este em Madri, mas na
sua volta, em vista do catálogo, ordenou que aquelas obras fossem apreendidas e
queimadas na praça pública pelo carrasco”. Portanto, apesar de totalmente legal
a importação, o bispo Dom Antonio de Palau Y Termens não aceitou que as mesmas
fossem comercializadas alegando que seus conteúdos eram imorais e ofensivos aos
interesses da igreja. Dom Palau teria afirmado: “A Igreja católica é
universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode
consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outros países".
Lachâtre sugeriu que os livros fossem,
então, devolvidos ao remetente na França, no caso, Allan Kardec. Dom Palau
respondeu a essa solicitação negativamente, alegando que os interesses da
igreja católica eram universais e seriam prejudicados independentemente do país
em que as respectivas obras fossem disponibilizadas.
No dia nove (9) de Outubro de 1861,
na esplanada de Barcelona, às 10h30 da manhã (portanto, poucos dias depois do
aniversário de 57 anos do Codificador do Espiritismo (03/10/1861)), as obras
foram rasgadas e queimadas em praça pública. Consta que a queima foi executada
perante uma multidão, que vaiava o religioso responsável pela incineração (um
padre, vestido formalmente com as indumentárias sacerdotais, trazendo uma cruz
em uma mão e uma tocha na outra) e seus auxiliares. A vaia teria sido
acompanhada por gritos de "Abaixo a inquisição!".
Kardec
utiliza pela primeira vez a expressão “Auto de fé de Barcelona” para designar
esse episódio na edição de novembro de 1.861 da “Revue Spirite”.
Segundo
o dicionário ( www.notapositiva.com /
dicionário_historia ) , “os autos-de-fé
consistiam em cerimónias mais ou menos públicas onde eram lidas e executadas as
sentenças do Tribunal do Santo Ofício (instituição criada pela Inquisição no
século XVI). Inicialmente havia dois tipos de autos-de-fé:
1.
Os autos-de-fé que se realizavam no interior do
Palácio da Inquisição ou num Convento, destinados exclusivamente aos
"reconciliados" (aqueles que eram readmitidos no seio da Igreja e
condenados a penas que iam desde penitências espirituais até à prisão e ao
desterro;
2.
Os autos-de-fé que se realizavam na praça pública onde
eram condenados não apenas os "reconciliados" mas também os
"relaxados" (aqueles que eram entregues à Justiça secular para
execução da pena de morte.
Com o passar do tempo, os autos-de-fé passaram a constituir um grandioso
espectáculo, realizado com grande pompa segundo um cerimonial rigorosamente
estabelecido. Assistiam a estas cerimónias não apenas as autoridades religiosas
e civis (muitas vezes o próprio rei estava presente), mas toda a população da
cidade que gritava em júbilo enquanto os condenados eram queimados vivos”.
Consta que o último homem
executado em um auto-de-fé havia sido morto em 1.826 pela Inquisição espanhola
(teria
sido o professor Cayetano Ripoll, condenado após dois anos de
julgamento sob a acusação de deísmo. Teria morrido pelo garrote
no pelourinho). Logo, podemos inferir que, em 1.861, já não havia “clima” para uma pena
de morte por motivos religiosos, pelo menos seguindo trâmites “oficiais”. Esse
avanço da sociedade europeia pode ser atribuído, principalmente, ao avanço dos
ideais iluministas, sobretudo no que diz respeito aos direitos civis.
Allan Kardec solicitou uma
orientação aos Espíritos superiores, considerando a hipótese de fazer valer
seus direitos, mas a resposta que foi elaborada pelo próprio “Espírito de
Verdade” (Obras Póstumas / Segunda Parte) sugeriu a Allan Kardec que o
Codificador não entrasse na justiça, conselho que foi seguido pelo Mestre
Lionês. Os Espíritos explicaram a Kardec que o evento geraria uma
extraordinária divulgação do Espiritismo, gerando indiretamente uma difusão das
obras, apesar da perda material dos livros causada pela intolerância religiosa.
Interessantemente, nove meses
depois, Dom Palau desencarna e manifesta-se mediunicamente na Sociedade
Parisiense de Estudos Espíritas. Neste curioso contato espiritual, Dom Palau é
recebido muito fraternalmente por Allan Kardec (de fato, Allan Kardec chega até
mesmo a fazer comentários elogiosos a Dom Palau). Vejamos os comentários de Dom
Palau Espírito, os quais se encontram registrados na “Revue Spirite” de Agosto
de 1.862 (TOMO V):
“... Ajudado por vosso chefe
espiritual, pude vir vos ensinar pelo meu exemplo e vos dizer: Não repilais
nenhuma das idéias anunciadas, porque um dia, um dia que durará e pesará como um
século, essas idéias anunciadas gritarão como a voz do anjo: Caim, que fizeste
de teu irmão? Que fizeste de nosso poder, que devia consolar e elevar a
Humanidade? O homem que, voluntariamente, vive cego e surdo de espírito, como
outros o são de corpo, sofrerá, expiará e renascerá para recomeçar o trabalho
intelectual que sua preguiça e seu orgulho lhe fizeram evitar; e essa terrível
voz me disse: Queimaste as idéias, e as idéias te queimaram...
“Orai
por mim; orai, porque ela é agradável a Deus, a prece que lhe dirige o
perseguido pelo perseguidor.
“Aquele
que foi bispo e que não é mais que um penitente.”
Essa interessante mensagem de Dom
Palau Espírito foi comentada por Allan Kardec no mesmo texto da Revue Spirite:
“O contraste entre as palavras do
Espírito e as do homem nada tem que deva surpreender; todos os dias se vê quem
pensa de outro modo depois da morte que durante a vida, uma vez que a venda das
ilusões caiu, e é uma incontestável prova de superioridade; os Espíritos
inferiores e vulgares persistem nos erros e preconceitos da vida terrestre...”
Há de se acrescentar uma nota de
Allan Kardec registrada em “Obras Póstumas” (Segunda Parte):
“NOTA
– De Barcelona foi-me enviado um desenho de aquarela feito por um artista
notável, representando a cena do auto-de-fé. Mandei tirar, em ponto menor, uma
cópia fotográfica. Possuo também cinzas colhidas no lugar da fogueira, das
folhas queimadas. Guardo-os em uma urna de cristal.”
Tais
documentos históricos foram guardados pelo Codificador, conforme o mesmo revela
em nota de rodapé também em “Obras Póstumas”. Segundo alguns estudiosos, esses
documentos teriam sido perdidos quando os nazistas ocuparam a França, sobretudo
Paris (1940-1944) durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Leonardo Marmo Moreira