Um dos principais atributos do
Espírito consiste em um dom fornecido pela divindade e inerente ao princípio
inteligente que é a capacidade de registrar vivências e aprendizados, erros e
experiências, lutas e dores, traumas e emoções. Essa espécie de “arquivo
espiritual” está presente em todos os seres vivos e é a base tanto da definição
da personalidade de cada indivíduo como da evolução espiritual propriamente
considerada.
Tendo-se em vista a informação
doutrinária de que “a Lei de Deus está escrita na consciência” da criatura,
conforme a questão 621 de “O Livro dos Espíritos”, este registro há de ser
total e implacável para que a Lei de Deus realmente seja soberana e
inexpugnável. Assim sendo, nós, de uma forma ou de outra, sempre temos o
registro total de nossas vivências como Espíritos imortais, mesmo que
conscientemente não tenhamos uma maior fixação de todo esse espetacular
conjunto de dados. Um exemplo disso é o próprio desdobramento parcial pelo sono
físico, que para a maioria das criaturas deixa um registro aparentemente
“superficial” das vivências, mas, no fundo, são experiências riquíssimas que
vão indiretamente nos induzir a determinados comportamentos, de acordo com o
tipo de experiência vivenciada durante essa pequena emancipação da alma.
De fato, Jesus afirmou que na Lei
nada passaria, “nem um único jota e nem um único ponto”. Somente admitindo esse
registro absoluto de tudo o que pensamos, falamos, sentimos e praticamos é que
se torna lógica, universal e, portanto, científica, a Lei de Causa e Efeito, ou
seja, o famoso “A cada um conforme suas obras” do Mestre Jesus. Somente assim,
a Lei de Ação e Reação representaria uma manifestação das soberanas Justiça e
Bondade de Deus para conosco, seus filhos, porque apenas desta forma a Lei se
apresenta exatamente igual para todas as criaturas.
É crível propor que esta
discussão acima estabelecida não é nenhuma novidade para todos os espíritas.
Sendo assim, é inadmissível a tese de que um Espírito organizador de mundos
tenha que reencarnar na forma de uma espécie de lesma para expiar. João
Evangelista afirmara: “Aqueles que não amam não conhecem a Deus porque Deus é
amor” e Jesus já havia chamado Deus de “Pai Nosso que está nos Céus...”, assim
como a falange do Espírito de Verdade definiu Deus como “a inteligência
suprema, a causa primária de todas as coisas” (questão 1 de “O Livro dos
Espíritos”). Admitir essa radical metempsicose seria duvidar das soberanas
bondade e inteligência de Deus. Realmente, essa “inteligência suprema”,
“soberanamente justa e boa”, não disporia de nenhum outro mecanismo menos
cruel, mais educativo e mais produtivo para a sociedade visando à educação ou
reeducação do chamado “Espírito culpado”? Aliás, o “Espírito culpado” não é
antes um filho ignorante necessitado de amor e de oportunidade?!
Há um aspecto que deve ser
igualmente discutido. Qual seria o estado de consciência do Espírito nessa
condição de lesma?! Ele estaria com uma lucidez intelectual plena, digna de um
organizador de mundos, observando e refletindo sobre a crueldade desse Deus
que, a princípio, deveria ser sinônimo de amor, consoante a bela assertiva de
João Evangelista? Ou ele estaria inconsciente e totalmente animalizado e
regredido espiritualmente? Nessa hipótese da inconsciência total, qual seria a
reeducação do culpado se o Espírito não tem mais nenhum registro?!
Se esse Espírito perdesse todos
os seus registros evolutivos, significaria que ele perdera a sua memória
espiritual. Essa hipótese consistiria em admitir que esse Espírito perdeu sua
individualidade, isto é, sua personalidade e, por conseqüência, que ele já é
outra coisa, não sendo mais ele mesmo. Essa proposta, apesar de ser, a priori,
espiritualista, acaba tendo como conseqüência prática um profundo materialismo,
semelhantemente à análise exarada em “O Livro dos Espíritos” sobre o panteísmo,
pois se eu não sou mais eu, eu não existo mais.
A discussão sobre esse tópico
deve estar muito pautada nos atributos de Deus que é, como sabemos através de
“O Livro dos Espíritos”, soberanamente justo e bom, e também soberanamente
inteligente. De fato, se pensarmos nas expiações mais duras que conhecemos,
elas sempre têm algo de profundamente reeducador e nenhuma delas seria tão
terrível como a possibilidade de reencarnação como “criptógamo carnudo”, isto
é, um tipo de minhoca. Síndrome de Down, autismo, deficiências físicas, miséria
material e todos os outros problemas, que podem ter causa expiatória, são claramente
mais educativos e menos cruéis do que esse tipo de metempsicose. Deus aproveita
o máximo do mínimo, sempre potencializando possibilidades de crescimento para
cada um de seus filhos, tanto individualmente como também para as coletividades
em que cada um de seus filhos participe. A lei de progresso é, antes de tudo,
uma lei de educação e é por isso que “O amor cobre a multidão de pecados” como
diria o Apóstolo Pedro, já que, em muitos casos, é amplamente “vantajoso” para
a Obra da Criação que o indivíduo acerte suas contas com a própria consciência
através do trabalho e do amor e não pela dor. De fato, o trabalho e o amor
tornam o processo de educação não apenas individual mas benéfico a um número
muito grande de irmãos que são influenciados direta e indiretamente por essa
ação.
Admitindo-se essa estranhíssima
hipótese de regressão espiritual, toda a Lei de Progresso estaria comprometida,
para não dizer totalmente destruída, pois se um Espírito que organiza mundos
regrediu uma vez, o que o impediria de regredir duas, três ou mais vezes?! A
Criação Divina seria uma incrível gangorra de avanços e regressões sucessivas!
E nenhuma conquista espiritual seria realmente eterna. Frases de Jesus como,
por exemplo, “Guardai o vosso tesouro onde as traças não corroem e os ladrões
não roubam” perderiam o seu significado profundo, pois os avanços e conquistas,
a priori, inalienáveis da criatura espiritual seriam passíveis de serem
perdidos. Até mesmo a própria elaboração da personalidade, que faz com que cada
um de nós seja uma pessoa única, e nunca mais deixe de ser essa pessoa
totalmente diferenciada das demais, estaria afetada. Frases do Apóstolo Paulo
como “Dando mais valor às coisas que não se vêem do que às que se vêem porque
as que se vêem são perecíveis e as que não se vêem são eternas” não passariam
de retórica vazia, constituindo “letra morta”, não representativa, por
conseguinte, dos aspectos mais belos da Lei de Deus que Jesus resumiu
basicamente no amor.
Ademais, esse possível ciclo
eterno de estranhas reencarnações desacopladas de um processo evolutivo
profundamente amoroso e belo tornaria injustificáveis as dores da vida. De
fato, todos os sofrimentos, que têm na constante evolução sua principal razão
de ser, perderiam o sentido, já que todas as conquistas intelecto-morais
poderiam ser perdidas de uma hora para outra, o que implica que, a rigor, o ser
espiritual em questão não teria conquistado nada. Assim, nós sofreríamos por
nada ou, se preferirmos, sofreríamos porque Deus quer, e, por algum motivo “misterioso”,
acha isso interessante. Ele que deveria ser um Pai de amor e bondade.
Por conseguinte, poderíamos
elaborar a subseqüente indagação: uma vez que o ciclo de reencarnações poderia
se tornar interminável, qual seria o real interesse de Deus nesse processo?!
Aquilo que chamamos de vida seria, indubitavelmente, um conjunto de sofrimentos
intermináveis sem nenhuma finalidade, caracterizando o mais terrível inferno.
Para concluir este tópico,
deixando os questionamentos mais concernentes com a filosofia e com a religião
e partindo para uma abordagem mais à maneira da ciência, indagaríamos: Existe
alguma evidência na natureza de que algum Espírito já tenha regredido?! Alguém
que já tenha regredido contou sua experiência? Alguns leitores poderiam afirmar
que os Espíritos não comunicariam em função de não se lembrarem dessa regressão
espiritual, uma vez que perderam o registro de todas as suas experiências
anteriores e, neste caso, nós voltamos às discussões anteriores sobre a
crueldade de Deus nesse processo e sobre as suas intrínsecas maldade e
inutilidade. Vale lembrar que mesmo Espíritos em condições complicadíssimas,
como é o caso dos ovóides, não perdem sua memória espiritual conforme nos
ensina André Luiz em Libertação e em Evolução em Dois Mundos.
Além disso, é bom frisar que essa condição é perispiritual e não física! Esses
Espíritos, logicamente, reencarnarão em corpos defeituosos, mas humanos, sempre
humanos! Comparar essa informação de André Luiz com a reencarnação em lesmas do
conceito roustainguista é buscar, ridiculamente, “dourar a pílula” por puro
fanatismo, personalismo e teimosia.
A fé raciocinada nos propõe uma
atitude de busca sincera em direção à verdade. Assim sendo, ter a humildade e,
principalmente, a inteligência de se admitir em erro para repensar pontos de
vista é o mínimo que se esperaria de quem ama a verdade mais do que suas
paixões e fixações pessoais. Importante salientar que há ainda na obra de
Roustaing muitos outros posicionamentos em choque com a Doutrina Espírita
seduzindo incautos e companheiros que formaram opinião precipitadamente e que,
por um motivo ou por outro, contra todas as evidências, insistem em não
reavaliar suas posições.
“É preferível rejeitar dez
verdades a aceitar uma única mentira”, ensinou-nos o sábio Espírito Erasto em
“O Livro dos Médiuns”. A aplicação desse relevante princípio da Codificação nos
faz, a priori, rejeitar essa teoria e a obra que a contém, ou seja, “Os Quatro
Evangelhos”, de J. B. Roustaing. Aliás, foi exatamente esse o posicionamento de
Allan Kardec há quase 150 anos na sua avaliação desta obra, quando afirmou
explicitamente que essa obra e suas idéias não podem fazer parte constituinte
do Espiritismo.
Leonardo Marmo Moreira
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