Entendendo “Cristianismo” como sendo a evolução histórica dos movimentos humanos vinculados aos discípulos de Jesus, conhecidos como Cristãos, é notório constatar que, após o retorno de Jesus ao mundo espiritual, Sua Mensagem têm sido sistemática e continuamente desfigurada.
De fato, a simples leitura de “Atos dos Apóstolos”, relato atribuído ao Evangelista Lucas, denota que o próprio grupo apostólico, apesar de sua extraordinária condição espiritual, apresentava diferenças de opinião e, até mesmo, certo nível de rivalidades mútuas (como, por exemplo, as discordâncias entre Paulo e Tiago Menor e entre Paulo e Pedro) que dificultavam uma homogeneidade de interpretações a respeito do que seria a “Verdade” propriamente dita. Tal constatação, por si só, já demonstra a insensatez daqueles que hipervalorizam o texto bíblico como sendo única e isoladamente “a palavra de Deus”, ignorando que mesmo em um grupo de excelência espiritual inquestionável, escolhido por Jesus e que conviveu com o Mestre, ou seja, que era constituído por testemunhas oculares dos fatos evangélicos, havia dificuldades no entendimento da essência do pensamento de Jesus. Vale lembrar que várias passagens de “Atos dos Apóstolos” são corroboradas pelo romance “Paulo e Estevão”, monumental obra de autoria do Benfeitor espiritual Emmanuel pela mediunidade segura de Francisco Cândido Xavier.
Essas dificuldades iniciais ganharam proporções cada vez maiores na medida em que o tempo foi passando. Realmente, após a desencarnação dos Apóstolos, a liderança do movimento cristão foi sendo substituída por indivíduos sem os mesmos predicados que os Discípulos da primeira hora. Assim, lenta e gradualmente, as interpretações meramente humanas foram sendo tomadas como lei dentro do movimento em questão, independentemente do fato de estar ou não em concordância com a essência do Evangelho de Jesus. Assim sendo, poderíamos elencar alguns 20 tópicos em que fica evidente tal distanciamento:
1) Hipervalorização do Velho Testamento em detrimento do Novo Testamento.
2) Consideração de Toda a Bíblia como sendo literalmente a “Palavra de Deus”.
3) Atribuição a homens e instituições humanas falíveis o caráter de “infalibilidade” divina, tal como aconteceu em 1870, quando o Papa Pio IX decretou a “infalibilidade papal”.
4) Consideração de todas as opiniões pessoais de Paulo como sendo da mesma importância dos Ensinos de Jesus.
5) Análise de versículos de forma isolada, sem considerar o contexto e sem procurar quaisquer correlações com outras passagens referentes ao mesmo assunto abordado.
6) Idolatria de Jesus como um ser a parte na Criação, ou mesmo um Ser literalmente divino, privilegiado ou parte constituinte de Deus. Tal atitude denota um mecanismo inconsciente de escapismo em relação às nossas obrigações cristãs, pois se Jesus é Deus, Ele não pode ser realmente seguido de forma concreta em Suas atitudes, o que seria perfeitamente plausível se fosse considerado como nosso Mestre e Irmão Maior.
7) Hipervalorização de atitudes de culto meramente exterior em detrimento de uma postura de amor e serenidade repercutindo em ações efetivas no campo do bem.
8) Convicção de que vidas isoladas de caráter “monástico”, muitas vezes agravadas por votos de silêncio e até mesmo autoflagelação, são formas de se agradar e servir a Deus. Realmente, o comportamento social de Jesus é a mais clara antítese desta proposta, já que o Mestre viveu totalmente integrado na sociedade de seu tempo.
9) Preocupação demasiada em memorizações de números de capítulos e versículos bíblicos como recurso de manifestação vaidosa de erudição ao invés de uma valorização de um estudo mais profundo sobre o significado de cada passagem evangélica e sua respectiva correlação com a realidade social atual bem como a necessidade de vivência diária.
10) Consideração de títulos de quaisquer tipos, inclusive religiosos, e considerações sociais acima do julgamento da própria consciência à luz do Evangelho de Jesus, que constituem a Lei de Deus em nós.
11) Interpretação da crucificação de Jesus como uma espécie de “salvo-conduto” para todas as nossas atitudes ímpias, utilizando do argumento de que Jesus morreu para nos salvar do pecado e, desta forma, já estaremos salvos por esse fato histórico, desde que “aceitemos” Jesus verbalmente, vinculando-os à igreja cristã e cumprindo alguns hábitos exteriores.
12) Abstenção de estudo e raciocínio próprios, hipervalorizando conhecimentos ditos “tradicionais” ou opiniões de religiosos “profissionais” famosos ou não, como se nós não fossemos capazes de buscar a “Verdade” por nossos próprios meios ou como se tal busca não fosse uma tarefa comum a todos os filhos de Deus.
13) Desprezo às reflexões de caráter religioso em detrimento de questões associadas somente ao trabalho material sob a justificativa de que tais análises constituem matéria de estudo somente para os religiosos profissionais. De fato, a verdadeira religiosidade é inerente a todos os filhos de Deus assim como a busca da espiritualidade deve ser nossa prioridade na existência terrena.
14) Fuga de análises de questões religiosas por considerar que as chamadas “Questões de Fé” não têm nenhuma relação com a razão e com a ciência, habituando-se a colocar assuntos de tamanha importância no mesmo nível de discussões políticas e futebolísticas.
15) Admitir que somente os cristãos serão salvos, uma vez que todos somos irmãos, filhos do mesmo Deus, inclusive os ateus, agnósticos e criminosos.
16) Aceitar de forma inquestionável dogmas estabelecidos por pessoas que são sujeitas às mesmas dificuldades que nós mesmos. É importante mencionar que muitas das leis supostamente universais de Deus foram decididas no voto, em Concílios, muitas vezes, como placares apertados. Ademais, muitos Concílios apresentaram conclusões contraditórias em relações a outros Concílios, o que nos remete às questões anteriores de infalibilidade.
17) Admitir que conceitos de caráter religioso não possam evoluir. Realmente, todas as áreas do conhecimento humano evoluem e por que apenas a religião não pode evoluir?!
18) Ignorar o hábito da leitura e do estudo de ciências, religiões e filosofias, uma vez que se a Bíblia é a “Palavra de Deus”, só a sua leitura basta ao cristão.
19) Diferenciar locais e datas como sagrados ou não sagrados baseado em quaisquer tipos de eventos históricos. O universo é obra de Deus e todo ele é sagrado assim como todos os dias.
20) Agir como os pais ou avós ou amigos agem ou agiram, isentando-se de reflexão pessoal, simplesmente por questões afetivas ou preguiça, esquecendo de que devemos fazer aos outros aquilo que gostaríamos que os outros nos fizessem assim como não fazer aos outros aquilo que não gostaríamos que os outros nos fizessem. Em outras palavras, devemos amar os irmãos e a nós mesmos como Jesus nos amou e ama, trabalhando para sermos bons, verdadeiros e úteis a Deus, à sociedade e a nós mesmos, de forma que sejamos hoje melhores do que ontem e amanhã melhores do que hoje.
Para concluir, é fundamental frisar que o Movimento Espírita está sujeito aos mesmos problemas que no passado afetaram o Cristianismo. Léon Denis afirmara que “O Espiritismo será aquilo que os Espíritas fizerem dele”, já que a Doutrina é uma realidade de Luz e o Movimento constituído por nós uma realidade de busca pela Luz. Logo, se essa busca não for profundamente sincera, dificilmente demonstraremos a excelência dos postulados doutrinários através das nossas atitudes pessoais ou coletivas.
Leonardo Marmo Moreira